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19/12/2014

Deserto do Atacama: Correr ou não correr?- Por Fernando Vale

Maratona, Meia Maratona, Relatos, Roteiros e viagens, Ultramaratona

Conhecer o deserto do Atacama sempre foi uma daquelas metas que vem sendo adiadas, pra próxima segunda-feira.

Eis que numa conversa entre colegas corredores, em meio a “modelos de tênis”, “melhor meia”, “tal gel é melhor que o outro”, “essa prova é legal essa outra nem tanto”, surgiu a frase: Vocês já pensaram na Mountain Do Deserto do Atacama.

– Nossa!! Deve ser quase impossível. É o deserto mais deserto do mundo.

Os mais atrevidos começaram a levantar dados e condições.

O grupo começou a ganhar corpo, éramos cinco indecisos avaliando custos, tempo, nível de treinamento. 6 Km, qualquer um que não seja iniciante consegue fazer; 23 Km já começa a ficar mais difícil, mas os temidos 42Km da Maratona são para poucos e para os corajosos sem juízo.

Os compromissos reduziram o grupo a quatro e as indecisões continuavam.

Para meu azar, tive uma lesão no joelho fazendo uma caminhada, cinco meses antes da prova e as dúvidas aumentaram.

As inscrições iam abrir e as vagas limitadíssimas; duas colegas montaram plantão na internet para vigiar a abertura do site (Vai abrir meia noite e acaba logo, quem conseguir primeiro avisa!).

Eu estava viajando para um desses poucos locais que ainda não tem internet e quando volto, vejo a mensagem: Fernandinho fizemos sua inscrição na maratona do deserto. Gelei!!! E agora? Tenho que ir… Começou a logística: vôos, conexões, hotéis, transfers, contas e mais contas; ainda seria final do semestre na universidade e teria que negociar com colegas para fecharem as disciplinas para mim.

Voltei aos treinos e a panturrilha que estava de repouso não aguentou. Nova lesão. Repouso e mais repouso e o tempo passando.

Agora só trotinhos. O quê são 10 Km de trotinho quando se está inscrito na maratona do deserto mais deserto do mundo daqui a três meses?!

Como tudo pode piorar… A panturrilha reclamou novamente durante o treino coordenativo. Agora ferrou de vez!

Faltando dois meses, com tudo pago. Nova meta e trabalho psicológico. Os passeios serão lindos: salares, dunas, lagoas altiplânicas, termas, flamingos, lhamas e vicunhas.

Quem sabe chegando lá consigo fazer 6 Km só para sentir o gostinho?!

Depois de horas de viagem, chegamos os seis, depois de duas adesões de última hora. Eu lesionado, duas colegas pós-lesões, uma que só queria desfilar e a outra esposa em passeio. Bela equipe!

Fomos fazer um trotinho para sentir o clima: umidade 10%, altitude 2500m, amplitude térmica de 10ºC, poeira e sal entrando pelas narinas secas, fora a radiação e o calor lá em cima literalmente.

Para minha surpresa me senti muito melhor do que esperava. Fizemos passeios lindíssimos para aclimatar até 4.900m e nenhum incômodo grave, fora a secura nasal. Duas colegas tiveram muita dor de cabeça e enjôo.

Chegou o dia da largada.  Estava muito melhor que esperava. Pensei: vou tentar os 23Km que sairá junto com a maratona. Devidamente paramentado, previa momentos difíceis com vento, areia, calor e muita secura.

Saímos em festa pelas vielas de San Pedro do Atacama entre as casas de adobe cor de barro (parece um grande cupinzeiro), pegamos a estrada feita de sal e argila em direção ao horizonte.  No quilômetro 8, dividia-se a massa dos 23 Km dos 180 heróis da maratona.

O que fazer???

Me auto avaliei, pesei os prós e contras, lembrei-me dos quase 10 anos de corrida e da tão repetida “memória do corpo” – nem sei se isso existe. Esse momento durou uma eternidade de poucos segundos. Virei em direção aos 42 km. O coração acelerou, o pensamento deu um milhão de voltas e, se a água não evaporasse tão rápido, talvez tivesse rolado uma lágrima.

Olhava para frente e só areia, rocha e a linha do horizonte. Minha grande amiga e companheira Esmeire ao meu lado dando força para superar essa decisão louca de sair da fisioterapia após meses sem treinar para correr a maratona do deserto mais deserto.

Íamos à pace moderado, tudo plano e relativamente tranquilo. Km 17; a panturrilha reclama após já termos saído da estrada e entrado em estreitos labirintos entre rochas e as primeiras dunas de areia fofa.

Andei e liberei minha fiel companheira para ir sozinha, pois a corrida tinha acabado para mim.

Após algumas dezenas de metros caminhando, consegui conviver relativamente bem com o incomodo na perna e recomecei a trotar. Me adaptei à nova situação e, em alguns quilômetros, reencontrei Esmeire. Vieram planícies de areia e sal, vales, rochas, dunas e mais dunas, trechos onde só caminhar era possível e a areia entrando no tênis e torturando os dedos.  Paramos 4 vezes para tirar pelo menos o equivalente uma xícara de areia dos tênis. E nós dois, lado a lado, estimulando um ao outro. Na mais famosa e difícil duna, no quilômetro 32, com 1 Km de extensão e uns 150m de altura, havia três pontos de oxigênio para dar um gás extra na subida. Nesse ponto, quem tinha chegado até ali já estava no automático e focado no “Eu vou conseguir; vou chegar!”.

Eu já visualizava mentalmente a chegada ao Km 39, quando a falta de treino deu sinal e uma câimbra começa a querer entrar. Novamente andando e liberando Esmeire para continuar.

Agora chego, nem que seja engatinhando.

Parcialmente recuperado, recomecei a trotar quando uma “Brisa” estimulante surge de bike na estrada e me dá novo gás: a filha da Esmeire veio nos encontrar e nos acompanhar para entrar na cidade.

Agora chego! Começam as primeiras casas, já ouço o barulho da chegada à praça. Ainda atravesso um riozinho que reaviva os pés doídos.

Vejo o pórtico no fim de uma rua estreita e muitas pessoas vibrando e estimulando. Uma nova energia sobe pelo corpo e volto ao ponto de partida semi-anestesiado. Todos da equipe estavam lá chegando junto comigo e felizes como eu.

Seis horas e 17 minutos depois da saída cruzo a linha de chegada. Abraços, beijos, euforia, alegria e lágrimas que evaporam antes de cair.

Correr a Maratona do Deserto do Atacama, SIM; ficar na zona de conforto não faz bem aos pés, ao coração e à mente.

Atacama 4

Atacama 3

Atacama 2   Atacama 6

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Anônimo
Anônimo
9 anos atrás

Emocionante seu relato, deu um nó na garganta!

Anônimo
Anônimo
9 anos atrás

Top demais! Parabéns pela conquista. Isso que é ser corredor de verdade!!

renato aguiar vale
9 anos atrás

Já temos o nosso Iron man. Fernando, passar o que passamos é mole, mas esta superação no Atacama, veio coroar que treinamento e força de vontade é tudo. Não é a toa que a gente ” vale” e estamos no mundo ” Aguiar “. E equipe é tudo. E, a Esmeire foi com, o apoio e fibra, certamente, o combustível determinante nesta conquista que, na verdade, é de todos mas, somente você a conquistou de uma forma magnifica. Valeu. E pode ter certeza, já podem vir outros projetos pois, Atacama é apenas mais um registro no passado.

Alécio
Alécio
9 anos atrás

Parabéns Fernando e Esmeire!
Muuuuito legal!
Senti a secura daqui.
Um dia chego no nível de vocês.
Grande abraço!

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